ARTIGO


A quaresma dos bons tempos

Marco Antônio Soares de Oliveira
Jornalista e escritor

Nos bons tempos em que se amarrava cachorro na lingüiça, a Quaresma era bem respeitada. Em noites de lua sentávamos no portão de Dona Sofia e ela desfilava histórias fantásticas em que nós crianças, empolgados, de ouvidos atentos, não deixávamos escapar com a atenção toda presa nos mínimos detalhes. Recolhíamos ao leito e nossos ouvidos não desgrudavam do que ocorria na rua em frente à nossa casa. Na nossa imaginação infantil mulas sem cabeças trotavam e relinchavam em nossas calçadas . Lobisomens vociferavam fogos e vampiros transitavam sobre nossas cabeças. Hoje penso nesse mundo pueril, que nos faziam sonhar e procurar o prazer no arrepio do medo frente ao inimaginável. Dona Sofia era a responsável pelo delírio de nossa fantasia. No final da Quaresma a Semana Santa nos transformavam em místicos. Logo, no Domingo de Ramos, uma atmosfera religiosa envolvia toda a cidade, fazendo com que as tardes ficassem ainda mais longas e mais tristes. Não se ouvia nem um pio de passarinho, tudo era mágico e encantado. O cinema fechava suas portas, suspendendo os filmes de Tarzan e de Batman. Nas igrejas, os altares eram cobertos com panos roxos ou pretos e as flores eram retiradas dos jarros de prata. Na quinta-feira, era celebrada a Missa de Páscoa e à tardinha tinha lugar a cerimônia do lava-pés. As mães faziam sempre questão para que os filhos participassem da cerimônia. Os meninos tinham que tomar um banho bem tomado, botar perfume nos pés para que não houvesse nem um cheirinho de chulé. Na sexta-feira a imagem do Senhor Morto ficava exposta à veneração dos fiéis. As “matracas” levadas pelos garotos invadiam as ruas anunciando que o fim do Salvador estava próximo. Às quinze horas, a Via Sacra. Logo em seguida, era realizada a Procissão do Senhor Morto, cujo esquife era conduzido pelas autoridades locais.Nós, crianças, aproveitávamos as ceras das velas, amarrávamos num barbante e durante toda a procissão dávamos coques nas pessoas da frente. Era uma travessura inocente. Depois de percorrer todas as ruas da cidade, o Cristo Morto ficava em exposição na Igreja, para ser beijado por homens, mulheres e crianças, quando depositavam a seus pés plantas aromáticas.
A festa para nós começava mesmo na madrugada de sexta para o sábado com a queimação do Judas, boneco feito com roupas velhas, contendo bombas que explodiam queimando. Era hábito o roubo do Judas por pessoas de outra rua, e para protegê-lo era bem vigiado até a hora de ser queimado. No sábado, às oito horas, era rezada a missa da Aleluia. Respirávamos aliviados daquela tensão contida para festejarmos e procurar o ovo da Páscoa escondida no quintal. Antigamente, não se comia carne durante toda a Semana Santa. Depois, com a evolução dos costumes, é que a Igreja liberou os dias de abstinência e jejum. As crendices nesse tempo avultavam e uma série de coisas eram consideradas pecaminosas. Exemplos: olhar-se ao espelho, usar rouge, batom e qualquer perfume, por serem sinais de vaidade; tomar banho vendo o próprio corpo nu, pecado por pensamentos; manter relações sexuais durante a Semana Santa era o maior de todos os pecados. O homem que assim procedesse, ficaria impotente para o resto da vida e a mulher incapacitada de gerar filhos.
Os fiéis cumpriam naquela época, religiosamente todas essas regras. Hoje o mundo mudou para pior, ou melhor, e essas tradições não são tão respeitadas pela maioria dos cristãos. É o que aconteceu com uma galeria de arte em Nova York, no ano passado, que iria apresentar uma escultura em tamanho original de Jesus Cristo, nu, feita de chocolate. A escultura “Meu Doce Senhor”, de Cosimo Cavallaro, deveria ser exibida diariamente durante duas horas, na Semana Santa, em uma janela de vidro da galeria que poderia ser vista a partir da rua. Porém a Liga Católica para Direitos Religiosos e Civis pediu o boicote do hotel Roger Smith, que gerencia também a galeria de arte e a exibição foi cancelada. Assim gira o mundo e os costumes são outros. Mas o respeito é necessário para todas as religiões e as boas tradições devem ser conservadas. Na cidade de Goiás mesmo existe uma tradição há 260 anos: a Procissão do Fogaréu, única nesse estilo realizada no Brasil. Simboliza a busca e prisão de Cristo. Dela participam personagens encapuzados, denominados Farricocas, que seriam penitentes e mantenedores da ordem. A procissão da Sexta-feira santa é realizada anualmente com a iluminação pública apagada e ao som de tambores. A escuridão, as tochas, a rapidez e os encapuzados, criam um clima medieval assustador e excitante de beleza impar. Guardemos então, as tradições puras em que o consumismo capitalista ainda não interferiu.

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