A TRAGÉDIA DA PIEDADE


Livro resgata autos do assassinato de Euclides da Cunha


Capa do livro e foto do escritor e engenheiro Euclides da Cunha


Sobre Euclides da Cunha parecia já se ter dito, escrito e encenado tudo. O autor de Os Sertões é daqueles personagens cuja vida — e morte — foi esmiuçada à exaustão. Mas há sempre algumas lacunas. E uma delas acaba de ser preenchida com o lançamento de Crônica de uma Tragédia Inesquecível - Autos do processo de Dilermando de Assis, que matou Euclides da Cunha. A obra de 232 páginas foi lançada na quarta-feira, dia 21, em São Paulo, pelas Editoras Albatroz, Loqüi e Terceiro Nome. Na manhã de 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha invadiu armado a casa de Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acertou dois tiros no rival, que reagiu também a tiros e matou o escritor. O livro traz a transcrição dos primeiros depoimentos colhidos logo após o tiroteio entre o amante e o marido de Anna Emília Solon da Cunha até a segunda sentença de absolvição de Dilermando, em 31 de outubro de 1914.
Quando matou Euclides da Cunha, Dilermando tinha 21 anos e há quatro mantinha um caso amoroso com Anna. O relacionamento extraconjugal trouxe à luz dois filhos, ambos registrados por Euclides. Os depoimentos dos autos revelam que o escritor tinha conhecimento desse fato. O processo mostra também que as razões do surgimento do triângulo amoroso que deu causa à “Tragédia da Piedade” - como ficou conhecido o crime, em alusão ao bairro carioca onde ocorreu - são usadas tanto pela defesa quanto pela acusação para tonificar a musculatura de suas teses. De um lado, a acusação carrega as tintas na tese de o réu ter cometido o crime impelido por “motivo reprovado”. De outro, os advogados de Dilermando tentam mostrar, de forma acessória à alegação de legítima defesa, que os atos e a personalidade de Euclides da Cunha teriam impulsionado sua mulher à traição. Um dos documentos juntados ao processo em que fica claro esse objetivo é o artigo do jornalista Júlio Bueno, companheiro de gamão de Euclides, publicado no jornal O Muzambinho uma semana depois do crime. Em um trecho, o jornalista descreve a relação do escritor com Anna.
“Mas aquele de grande espírito tinha uma falha; aquele de imenso coração tinha um ponto negro; aquela alma Adamantina, como novo Gulinan, tinha uma jaça; aquele Himalaia de patriotismo, de dedicação para os fracos, para os oprimidos, para os pequeninos, para os infortunados, tinha uma caverna escura; como Achiles, o herói de Homero, tinha um ponto vulnerável; aquele cultor apaixonado do dever tinha um senão - essa falha, esse ponto negro, essa jaça, essa caverna escura, esse ponto vulnerável, esse senão, era o abandono moral da companheira, daquela que de carinho, de zelo, de dedicação, o aconselhava, o advertia, o arredava dos perigos, procurando cercá-lo de uma atmosfera de calma e repouso. Porém o grande homem, por uma fatalidade idiossincrásica, correspondia mal a essas disposições da esposa.”

Prisão moral
O depoimento sobre Euclides da Cunha publicado no jornal por seu parceiro de gamão é apenas uma entre as diversas preciosidades que constam do processo e são resgatadas pelo livro. O relatório do delegado Joaquim Pedro de Oliveira Alcântara, que presidiu o inquérito policial sobre o crime, é revelador da comoção social provocada com a morte do escritor. Comoção que faria Dilermando, mesmo absolvido por duas vezes, ser sempre tido como o algoz do autor de Os Sertões. Em um trecho do relatório, o delegado atribui a “desordem no lar do extinto e glorioso homem de letras” às “relações adulterinas” mantidas entre Dilermando e Anna. Sustenta que o assassinato foi premeditado e contou com a ajuda de Dinorah, irmão de Dilermando, que também foi alvejado com dois tiros por Euclides e sobreviveu.

Fatos e versões
O delegado faz ainda referência à contradição nos depoimentos dos envolvidos na tragédia. A alegação ganha peso com a leitura dos primeiros depoimentos prestados logo após o crime, à Polícia, e os que se seguiram, à Justiça. A viúva de Euclides da Cunha, por exemplo, um dia depois da morte de seu marido, afirma que “suas relações de amizade com os moços Dilermando e Dinorah foram sempre de proteção e carinho maternal”. No dia seguinte, retifica as declarações para atestar que tinha estreitas relações com Dilermando, “a quem não ocultava todos os seus desgostos íntimos”. Mais de dois meses depois, ouvida em Juízo, Anna revela os detalhes do relacionamento e admite, inclusive, que Euclides não é o pai de um de seus filhos.

Eterno culpado
Dilermando de Assis foi denunciado pelo assassinato de Euclides da Cunha em 24 de setembro de 1909 e absolvido pela primeira vez em 5 de maio de 1911. Dos 12 jurados, seis votaram a favor da tese de legítima defesa e prevaleceu o princípio de que o empate beneficia o réu — in dúbio pro réu. A Justiça acolheu recurso da Promotoria por um novo julgamento. No segundo, em 31 de outubro de 1914, em um Júri formado por sete pessoas, cinco decidiram que o réu agiu em legítima defesa ao matar Euclides da Cunha. O campeão de tiro Dilermando foi absolvido pela Justiça, mas nunca pela sociedade, apesar de passar o resto da vida tentando resgatar sua reputação. Como relata a professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, Walnice Nogueira Galvão, na brilhante apresentação que faz do processo, a última entrevista de Dilermando de Assis à imprensa teve conseqüências desastrosas. Segundo a estudiosa da vida de Euclides da Cunha, a reportagem do jornalista David Nasser, da revista O Cruzeiro, em 1951, sob o título “O crime de matar um Deus”, trouxe fotos de Dilermando com o torso nu para mostrar as cicatrizes deixadas pelos tiros desferidos por Euclides da Cunha e redundou em novos ataques e exposição pública negativa. Dilermando de Assis morreu três semanas depois da publicação da reportagem, vítima de ataque cardíaco, aos 63 anos.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

2 comentários:

Anônimo disse...

Nada justifica um assassinato. Ainda mais se tratando de Euclides da Cunha, mas em uma sociedade conservadora, como era a do Brasil no início do século XX, não é estranho uma mulher casada, de "boa família", procurar outro homem, que não seu marido. Euclides jamais deveria ter constituído família. Negligenciou a sua, e quando foi remotamar as rédeas, levou balaços de Dilermando, que anos depois, matou outro filho do escritor. Uma tragédia, onde não há culpados, só perdedores.

Anônimo disse...

Os riopardenses adoram Euclides. E rendem homenagens a ele até hoje na Semana Euclidiana. Um ato louvável num país sem memória, que cultua toscos jogadores de bola em detrimento de professores e cientistas ganhando salário de fome. Mas bate uma frustração em meus conterrâneos. Nunca, em tempo algum, um riopardense conseguiu desenvolver um trabalho de reconhecimento nacional sobre Euclides. Como papagaios de pirata, ficamos admirando a produção intelectual dos outros. Sem falar na eterna polêmica em torno dos chamados euclidianistas. Catedráticos de meia pataca que nunca fizeram nada além de passar a limpo a vida do grande escritor. Então, vamos ler mais um livro interessante sobre Euclides,mais uma vez escrito por um não-riopardense. E tenho dito.